O Livro

Prólogo

Eu, o livro

Sou um livro em branco jogado no vão da escada. Estou no desvão da vida. É o melhor lugar para se estar quando os dias perdem a graça. E quando se quer ser preenchido apenas pelos dramas alheios. Espectador da vida na leveza do nada.Quando eu era uma pessoa tinha mania de olhar a vida como se fosse um céu estrelado. As pessoas eram estrelas de grandezas diferentes, mas sempre iluminadas. Acreditei tanto no ser humano que terminei papel. Hoje o meu olhar é isento de julgamentos. Não há bondade neste olhar ancestral. Nem vejo estrelas no céu sem nuvens. Sou o que quero ser: o nada insidiando-se na vida deste edifício.

Ele, o vão da escada

Estou no centro de um metro quadrado. Escuro que cheira a sujeiras variadas. Mas não há melhor lugar para um livro que pretende ser preenchido. Sobre mim é onde começa a vida. No primeiro lance de uma escada que serpenteia entre quatro andares. Daqui vejo a porta de entrada do edifício. E mais além o asfalto de uma avenida movimentada. Muitas vidas passam pela calçada à minha frente, mas o meu interesse está nas vidas que abrem e fecham aquela porta.Nelas é que centrarei minha atenção. Delas é que sairão as letras que me preencherão.

Capítulo primeiro

Minhas páginas estão úmidas de preguiça desta terça-feira. Acordei mais agônico do que poderia se esperar de um papel raso e plano. E para não mofar tristeza aguço-me para os sons que me chegam em variados decibéis. O mais próximo é o som de passos descendo a escada. É ela, a síndica. Marina. Nome de morena, orgulhosamente ostentado pela síndica ruiva. Tudo nela parece avermelhar-se. Até a voz onde alternam graves e agudos em oscilante sinfonia. Na brancura do rosto brilha olhar de estrela cadente. Ou de cachorro abandonado pelo dono. Às vezes triste, outras de raiva impotente. Mas o dono dela nunca vai a lugar algum. Vive de sonho acordado lá no quarto andar. Dia após dia. Ela trabalha, ele come. Pesa-lhe a inesquecível glória de ter sido um astro dos ringues. Pesa-lhe tanto que planta-o na cama como árvore ressequida no solo crestado. Marina tem certeza que o ama. Até mesmo nas noites de bebedeira quando o amor dele vira estupro. Ela acredita que em outra vida cometeu um pecado grave. Precisa purificar-se e Donato é seu exorcista.
Marina passa por mim e inunda o ar de lavanda. Nunca me viu. Nunca olha para o vão da escada. Mas me sente. Sempre olha em volta quando passa por mim. Hoje está apressada. Deve ter perdido a hora. Mas que horas serão? Herdei da minha vida passada uma raiva solene dos ponteiros do relógio. Nunca quis obedecê-los. Atropelava-os sempre com a vontade de saltar no escuro e das trevas criar novas luzes. Sem tempo e sem espaço. Hoje, o tempo não existe para mim. Guio-me apenas pelas idas e vindas de Leca. Leca com sua enorme bunda que sempre esbarra nestas paredes escuras. Entra sempre cantando seus hinos. Canta desesperadamente, mas nunca parou para pensar nas palavras que canta. Nem nos pecados que comete. Tremo inteiro quando ela alcança os agudos neste cubículo fechado. Ela teima em guardar suas vassouras bem ao meu lado. Morro de medo de que um dia ela me varra daqui. Mas é um medo infundado. Estranhamente para alguém que nunca lê, Leca tem um cuidado especial comigo. Diariamente passa sobre mim as penas falsificadas do seu espanador e acaricia minha capa. Parece intuir que um dia poderemos ser, eu e ela, personagens de um filme de Almodóvar. Mal sabe ela que apenas uma pessoa me conhecerá preenchido. Já escolhi a quem me darei: Dona Cecília. Desconheço alguém que goste mais de um livro. Gosta tanto que vive meio torta pelo peso da sacola que carrega diariamente. Aonde vai, leva seus cinco às vezes seis livros que lê compulsivamente. Herança dos seus tempos de professora. Tempo que ela eterniza através da leitura e com a mania de “ensinar” seus vizinhos. Ensinar a viver. Nos seus sessenta e dois anos ela acredita já ter visto de tudo e tudo saber ensinar. Professora de um tempo em que educar é dizer o que fazer, mas não necessariamente fazer o que foi dito. Galileu Galilei deveria ter virado um livro. Evitaria o revirar-se convulsivo ao saber-se ostensivamente ignorado no que levou anos a descobrir.
Um silêncio anônimo leva-me ao terceiro andar. É a minha caixa preta. Ele não cabe nos meus escritos. Vez ou outra até posso referir-me às suas portas ou ao corredor por onde sobem e descem os moradores dos outros andares. Mas ele continuará sendo o meu mistério. É a concretização do nada. Um espaço em branco onde recolherei meus segredos. Porque um livro também precisa ter segredos inconfessáveis. O silêncio é assaltado por uma insolente guitarra. Manhã ainda e ele já solta a voz no segundo andar. Leôncio. Mad Leo, como gosta de ser chamado. Mora com a avó. Duas gerações espaçadas por uma. A filha o entregou em seus braços na despedida. Era para ser apenas uma semana. Transformou-se na eternidade. Leo não sente saudades do que não conheceu. Mas sente um buraco do lado esquerdo. Como se seu coração estivesse pendurado sobre o precipício. Ou como se ele tivesse nascido do nada e tivesse sido aparado pela avó. Uma porta bate no mesmo andar. Passos apressados descem as escadas. Quase correndo Nora atravessa o vestíbulo e vai direto para as gavetas da recepção. Procura a correspondência. A maldita carta que espera há dias. Há dias espreita a chegada dela. Seus grandes olhos castanhos dividem-se entre o medo e o desafio. Um olhar reflete a cor da calmaria. O outro chama pelo vermelho da paixão. Não deveria ter dado aquele endereço. Mas deu. Era seu diabinho que chicoteava sua sensatez. A cada vez que ele ganhava a luta o corpo dela entrava em transe de expectativa. E o rosto ganhava aquele rubor que enlouquecia o garoto seu vizinho. Um enlouquecimento platônico que jorrava fluidos nos lençóis adolescentes.Com o rosto entre as mãos, Nora sobe de volta as escadas. Devagar. Como se retardando os passos a carta fosse chegar atrás dela. Numa destas mágicas que só o coração acredita que exista. E devagar também se recompõe. É hora do café da manhã com o marido.
Um livro tem o sentido da visão, mas não tem olhos para fechar. Nem sempre quero ver o que acontece ao meu redor, mas na falta deste instrumento colorido arregalo-me para a vida dos outros.Ver Rogério chegando com o rosto marcado por uma noite tempestuosa não é agradável nem para o não-humano. Não por dó, que este é um sentimento paralisante. Por simpatia impotente já que nem posso dar-lhe tapinhas nas costas. Rogério apaixonou-se pela sua cruz: um militar condicionado a esconder até de si mesmo suas vontades homossexuais. A cada encontro, é preciso marcar na pele de Rogério a raiva por amá-lo. E o amor do garoto ainda é necessidade demais para insurgir-se. Seu parceiro é o pai, o amante, o justiceiro. Isso faz com que algumas de suas manhãs pareçam um final de batalha campal.De cabeça baixa sobe os primeiros lances da escada. Sequer levanta-a para responder ao cumprimento do sempre apressado Dema. Ele, um executivo que sempre cheira a loção após barba das mais caras.Dema é filho da ventania. Tem aquele ar de eterno vento de primavera. Respira a vida sofregamente como se precisasse recuperar os vinte anos de um casamento castrador. É também olhos compridos para a vizinha síndica. O vermelho dela o agride e incita a loucas fantasias. Há noites em que o som abafado vindo do apartamento ao lado o leva a frenéticas viagens solitárias. Detesta masturbar-se. Nestes momentos, o gozo sempre vem com uma ponta de raiva. Como se lá no fundo da memória ressoasse a voz da mãe condenando-o ao inferno por seus gozos adolescentes.Ele sai pela porta enquanto entra Osório, o porteiro. Ao ver Osório um medo estremecente me planta no chão úmido. Oh deuses! Começará amanhã a reforma do prédio. Agora, quem carregará a cruz serei eu. Não sei o que acontecerá comigo. Já imagino-me na caçamba de entulhos. Ou em algum saco de lixo. Ou estatelado na calçada com as folhas voando ao vento. Detesto me saber sem o controle da minha vida. Mas apelo ao deus dos papéis e me entrego inteiro à heteronomia: ele há de existir e velará por mim!


Capítulo segundo

Ainda sem compreender meu passado mais recente, sinto-me ressuscitado. Depois de um mês e pouco com os sentidos trocados e empoeirados volto à vida de papel quase em branco. Da cor, trago apenas a referência. Minhas páginas ganharam o colorido e a textura de pão amanhecido. Os acontecimentos passados me chegam descontínuos. Os caminhos da minha memória são traçados por linhas tortas. Mas nasci para ser um herói, então o serei.Pelas mãos de Leca voltei ao vão da escada. Sinto falta da escuridão completa que aqui reinava. Pintaram de branco as paredes e é como se o sol refletisse pálido à minha frente. Mas ainda sonho. O que me atormenta é o medo de ser novamente atropelado pela falta de sonho destes moradores. Vivo entre a realidade e a imaginação e quero ser apenas um sonho acordado. Pretendia imortalizar para dona Cecília o dia a dia deste lugar. A reforma fez de mim um historiador. Um historiador mendigo, sem teto e sem terra – mas um fiel guardião dos acontecimentos passados. Ainda que de um passado recentíssimo e rescendendo a pintura nova.No primeiro dia da reforma colocaram sobre mim pincéis, latas de tinta e ferramentas várias. Soterrado pela falta de consciência literária dos meus algozes lá fiquei por tempo que não sei definir. Escutei piadas de mau gosto, resmungos indignados, comentários pornográficos e mais um sem número de palavras soltas e assassinatos da língua portuguesa. Até que Leca lembrou-se da minha existência.

Pelas mãos de Leca fui colocado no oratório de Nossa Senhora vestida de azul. Lá no terceiro andar. Um excelente ponto de visão para mim, mas em completa vulnerabilidade. A qualquer momento uma mão poderia promover uma nova mudança.Já na primeira noite na casa nova sou cúmplice do choro de Marina. Em desespero ela relembra a loucura da tarde. Ainda não entendeu o que lhe acontecera. Parece ter sido tomada por outro espírito. Um espírito que gritava pela carne como se nunca a tivesse gozado.Após um dia difícil no banco, Marina resolvera dar uma volta na pista do parque. Precisava cicatrizar as feridas da noite passada antes de encontrá-lo. O seu carcereiro. Certamente ele estaria bêbado. Estava sendo assim, noite após noite, desde que a reforma começara. Ao final do dia de trabalho ele descia para tomar uma com os peões. E de uma passava para infinitas doses.Pensava em Donato e a vontade era voar. Criar asas e sumir no horizonte. Mas Donato era o peso que precisava carregar. Jurara isso na frente da Virgem Maria.Passou por uma construção e ouviu exclamações e assovios. Ainda perdida em pensamentos olhou um grupo de homens sentado na guia. Um par de olhos verdes paralisou-a. Por segundos aqueles olhos prenderam os seus. Assustada, apressou o passo.Há tempos Marina não se sentia desejada. Prometera fidelidade e cumpriria a promessa. Sabia-se bonita, mas evitava olhar nos olhos de outro homem que não Donato. Com um balançar de ombros seguiu em frente. Não sabia porque estava a pensar nisso. Mas algo no seu corpo mudara. A cabeça estava altiva, os ombros para trás e sentia seu corpo bamboleante. O coração iniciou um bater frenético como uma borboleta amedrontada.Sentiu-o ao seu lado. Os olhos verdes atrevidos e penetrantes. Ele percebera a reação dela e começara a segui-la. Tensa, ela nada fazia além de fingir ignorá-lo. Lembrou-se de sua mãe e dos conselhos quando era adolescente. Lembrou-se de uma oração ao anjo da guarda, mas não conseguia passar da segunda frase.O homem virou voz. Voz que falava de desejos em palavrões que mexiam com ela terrivelmente. Voz que entrava em seu corpo e virava arrepio em sua pele. Os passos se apressaram. O coração virou gazela espavorida. Mas o corpo pedia a voz.

A tarde virou noite e encontrou-a numa cama de hotel. Hotel de centro da cidade. Ao seu lado, um corpo moreno. Puro músculos e cheiro de cio. Mãos calosas passavam carinhosamente sobre seu corpo. Uma voz carregada de sensualidade falava-lhe baixinho de amor. Os olhos verdes agora a olhavam carinhosos e amantes.Ela não se reconhecia mais. Sentia-se uma espiral infinita. Como se fosse volátil e pairasse rodopiando sobre si mesma. O corpo guardava o ardor de um amor animal. Amor sim. Embora ela tivesse se transformado numa fêmea de puro instintos, nunca se sentira tão amada. Aquele homem soubera amar cada gemido, cada espasmo, cada grito dela. E a fizera se sentir generosamente fêmea.Pensou em sua boca sendo vagarosamente tomada pela dele. Dentes mordiscando seus lábios, a língua provocando a sua, o cheiro de cio entrando-lhe pelos poros. Olhou as marcas de suas unhas descendo pelo corpo dele. Viu-se felina. Vermelhamente felina. Um arrepio de desejo voltou a correr-lhe pelo corpo. Sentia-se líquida. E uma vontade louca de derramar-se sobre ele.O som do celular jogou-a na realidade. Pulando da cama sentiu-se novamente Marina. Uma vergonha impiedosa fez com que corresse para o banheiro. Vestiu-se apressada e voltou ao quarto. Sem olhar os olhos verdes, tirou da carteira uma nota e estendeu a ele. Da cama, ele apenas a olhava. Mudo. Tranqüilo. Moreno.Olhou-o. Um sorriso brincava em seus olhos. Com uma inacreditável secura na boca sentiu-se novamente paralisada. Aquele homem tinha o poder de transformá-la. De fazer nascer nela uma avidez de vida como nunca sentira. Devagar ele estendeu a mão. Ignorando a nota, fechou os dedos em seu pulso. Sem forçar, começou a acariciar sua pele com o polegar. Olhos prendendo olhos. Os grilhões estavam ali. Naquele insondável mar verde-esmeralda.
Percebendo o desespero nos olhos dela, soltou-a. Apressadamente Marina jogou sobre a cama a nota e desceu correndo as escadas.Não sabia como chegara em casa. O trajeto foi feito pelo carro, não por ela. Ela ainda era confusão. Um amontoado de sensações que deixavam seu corpo fraco e a mente esvoaçante. Ao chegar fora direto para o banheiro. Precisava deixar a água correr pelo seu corpo como a purificá-la de si própria. Depois do desespero, o choro tornou-se manso. Não era choro de arrependimento. Nada nela se arrependia. Era choro de perda. Perda de si mesma. Perda daquela que a guardava dos prazeres do mundo. Perda da fé na Virgem Maria.Ainda sem conseguir explicar o que lhe acontecera, entrou no quarto. Donato roncava, ainda vestido, sobre a cama. Pela primeira vez o cheiro do quarto pareceu-lhe insuportável. Lembrou-se de outro cheiro, de outro quarto, de outro homem. Nada sabia de sua identidade. Mas sabia do que ele poderia fazer com seu corpo e com seu coração.Nesta noite dormiria no sofá da sala de televisão. Sabia que pagaria caro na manhã seguinte, mas aquela noite seria apenas dela. E de suas lembranças.E elas vieram. Quentes, vívidas. De olhos fechados, entregou-se a elas. Haveria tempo de se redimir da luxúria. Agora, a voz estava em seus ouvidos. A mesma voz que levou-a a subir as escadas daquele hotel.

Não me sinto autorizado a entrar nos sonhos de Marina. Não por esta noite. São delas as lembranças. É dela o desassossego e o desejo clandestino. De onde estou escuto os gritos de Dema como se estivesse ao meu lado. Sinto falta das minhas mãos humanas: gritos no meio da noite não me atraem! Desde que os deuses me jogaram neste prédio escuto os gritos noturnos de Dema. Como não posso evita-los, deixo-os entrar em mim. E incorporo o homem-menino perdido na busca da felicidade.Em seis meses de separação nenhuma noite em que ela deixasse de atormentá-lo. A mulher com quem viveu vinte anos. Desta vez era o tênis do filho que ele prometera e não comprara. Esquecera-se. Ela cobrava como se ele não tivesse nenhuma outra preocupação a não ser cumprir suas exigências.Desligou o telefone e desmanchou-se sobre a cama. Tivera um dia duro e precisava de uma bebida. Na verdade, queria mesmo era ter uma mulher ali em sua cama. Passara tempo demais casado e sentia falta do aconchego feminino. Aquele dos bons tempos do seu casamento. Pensou na vizinha. Ele não entendia como aquela mulher suportava viver com Donato. Não tinha intenção de se meter na vida dos dois, mas o incomodava ouvir os gritos abafados e o choro baixo da ruiva. Sabia não ter sido um marido exemplar, mas jamais encostara as mãos na mulher a não ser para lhe fazer carinhos. Mesmo quando a vontade era jogá-la janela abaixo.Seu casamento ainda era uma ferida exposta. Ferida que às vezes doía. Como agora. Lembrou-se do tempo em que ela era a namorada-esposa-amante. Eram felizes. Viajavam pelo infinito e sempre voltavam fortes para enfrentar seus medos. Mas os anos trouxeram aquela sombra densa entre eles. Nunca soube de onde veio. Mas instalou-se e cresceu. Separou-os. Um de cada lado. Hoje, restam os gritos dela e a solidão dele. E o sonho de ter Marina.

Capítulo Terceiro

Com o silêncio da noite pus-me a pensar na minha vida coisificante. Queria ser apenas uma coisa comum. Substantivo comuníssimo que nem é alegre nem triste. E que não sente nem se intromete nas dores do mundo. Sei que sou uma coisa porque livro é coisa. Mas não sou uma coisa qualquer. E daí vem minha quase-crise de consciência. Sou um informante que por vezes atravessa os fatos e assusta a si mesmo com a interpretação destes fatos. Vivo no reino das coisas, mas transcendo para o humano como se ainda tivesse um corpo.E como corpo, sinto o "caso" de Marina como meu. E um estremecimento intumescido parece engrossar o meu papel. Para Marina, este é um pecado equilibrante - o adultério. Para mim nem é pecado. Gostei que ela finalmente tenha saído da inércia de ignorar a si mesma. Não porque goste dela, mas porque não gosto de Donato. E já que comecei a me assumir apenas semiético, começo a torcer para que Marina perca-se novamente em olhos verdes. Ainda que sejam os de Dema.Este ainda não é nada contra Dema. Só um pouco de desprezo pela sua adolescência tardia. Até acho interessante que aos 43 anos ele ainda suba saltitante os inúmeros degraus que o separam da sua porta - e de língua guardada na boca. Mas que se perca em qualquer rabo-de-saia que encontre não é lá tão interessante. Acostumado que foi à domesticidade sexual, cisma de adivinhar o conteúdo olhando a embalagem. Por vezes, irresponsavelmente pula a camisinha. Sorte que sua intuição ainda não o tenha traído.Também não gosto de seu apelido. Dema de Ademar! Suprimiu o que mais gosto, o mar. Ah, mas este gostar era antes de virar papel. Papel não combina mais com mar. Desmancha. Já imagino o meu sofrer ao ser desmanchado lentamente nas ondas de um mar sonâmbulo. Jogado de um lado para outro e impiedosamente beijado pela fúria marinha!Então, sendo coisa que pensa e sofre, sinto-me incomodado em estar espremido entre a imagem da virgem de azul e as paredes deste oratório. Uma dorzinha humana faz-me sentir sacrílego ao acobertar o adultério de Marina. Ou concupiscente ao contorcer-me e torcer para que Dema consiga o que tanto deseja. Ou apenas por faltar-me o devido decoro livresco. Mas tudo isso passando por uma inconfessada e mais-do-que-humana inveja.Mas é inveja que vem e vai num piscar imaginário. E até que novas mãos me tirem deste mirante, fico a ver, ouvir e sentir tudo a minha volta. O que significa o escuro absoluto deste terceiro andar que guarda os meus mistérios de mim mesmo. Mas a aurora anuncia o vermelho-róseo lá fora. O dia toma forma de barulhos sobre e sob mim. Hora de desvestir meus pudores e criar o sol dentro das minhas páginas. Sou uma coisa que fulgentemente humaniza o existir deste edifício. É meu destino estar grávido de outros destinos.

Sou invadido pelos sons vindos do banheiro de Nora. Na minha onipotência de deus-papel, transpasso paredes e me instalo em volta de sua consciência. Nora está revirando-se internamente. Desde que fez quarenta anos anda rodopiando frente ao espelho. Não compreende o que lhe acontece. Sabe apenas que dentro dela algo muda a cada nascer do sol. E o sol ultimamente tem nascido de um alaranjado quase vermelho. É que dentro dela tem um fogo doido. Fogo que adivinha a chegada do pôr-do-sol.Há uma urgência no ar do banheiro. O espelho mostra as pequenas rugas que ela ignora solenemente. Nunca antes se preocupara com corpo. Agora ele parecia crescer à sua frente. E por detrás dele a imagem do menino. Aconteceu. O menino. Entrou nela como forças opostas duelando-se. E rompeu a barreira da idade. Deixou-a equilibrando-se à beira do precipício. Ela cairá porque há nele uma parte da vida nela. A parte não vivida. E porque há na loucura a esperança de salvação.Durante os dias anteriores esteve numa voragem de expectativa. O fogo dentro dela buscava a carta do menino. O gelo lembrava os vinte anos que os separavam. E era o gelo que fazia afundar-se a linha entre as sobrancelhas. Nora tem uma vida dentro da vida dela. Uma vida que se esconde até dela mesma. Vida sem causa ou efeito, mas que parece querer explodir na pele. Ama tudo a sua volta. O marido, os filhos, o verde das árvores. Mas só se completa com esta vida secreta. É esta vida que faz o eterno transformar-se em intensidade do momento. E esta vida agora tinha um corpo. E boca.Não quero compreender a tensão de Nora. Nem levá-la em consideração. Mas não consigo deixar de admirá-la. De acompanhá-la neste vôo incerto de mariposa esfuziante. Persegue o fogo sabendo do risco de queimar-se. Tem uma coragem que vem do sonho. E o sonho que vem desta vida barroca que cria lá dentro.